Pode matar bandido?

Pela não criminalização da favela e não legitimação do genocídio negro

Nas últimas duas semanas, movimentos de favelas se mobilizaram em todo o Rio de Janeiro denunciando o racismo cotidiano que as favelas e as periferias sofrem nestes seus mais de 120 anos de surgimento. O primeiro caso foi por causa da prisão do MC Poze, ocorrida no dia 29 de maio de 2025. MC Poze foi preso sob acusação de associação e tráfico de drogas — a mesma acusação que o tornou réu em ação penal ajuizada em 2020 e da qual foi absolvido por ausência de provas. Ambas as ações penais giram em torno da narrativa de que o cantor incitaria a prática de crimes por meio das letras de suas músicas, algo que, historicamente, os cantores do rap e funk sofrem.

O segundo caso que ganhou notoriedade – no último final de semana – foi o assassinato de mais um jovem negro, Herus Guimarães Mendes, de 24, que morreu em operação policial realizada pelo BOPE, durante uma festa junina comunitária, na Favela Santo Amaro, localizada na Zona Sul do Rio de Janeiro. Herus estava apenas comprando um lanche em meio a uma festa que reunia idosos, crianças, jovens, adultos que apenas queriam se divertir. 

Os dois fatos demonstram a criminalização e marginalização de toda uma cultura favelada colocada desde sempre como um território inimigo. Afinal, o favelado não pode cantar e questionar a própria realidade e o favelado não pode estar em festejo coletivo e comunitário, seja num baile funk, ou seja numa festa junina. Ou seja, o favelado não pode sorrir, existir, ser!

Estes dois casos ganharam repercussão midiática, seja em veículos de esquerda ou de direita. Mas o que me chamou atenção é que as manchetes de esquerda ou de direita eram semelhantes em várias ocasiões, pois não houve ali questionamentos do por que a polícia criminaliza tal território e toda a sua cultura. Títulos de matérias diziam que “MC não é bandido”, e que “Herus não é bandido”. Sim, sempre importante destacar nome, sobrenome, idade e profissão de cada uma das vítimas vivas ou assassinadas pelo Estado. 

Mas quando afirmamos isto, estamos dizendo que um determinado corpo negro e favelado pode ser assassinado. Esta afirmação legitima para que se tenha até mesmo operações policiais nas favelas e periferias do Rio. Legitima a ideia de que há um corpo que pode ser matável, no caso, o corpo do “bandido” e num país que não há pena de morte, num país que criminaliza, violenta, empobrece e marginaliza toda uma juventude negra, pobre e favelado sem dar qualquer chance dessa juventude viver, crescer, estudar ou se profissionalizar. Ou seja, pela não criminalização da favela e não legitimação do genocídio negro. Que façamos manchetes de jornais críticas!

Imagem: @brunoitancpx

compartilhe esse post

Gizele Martins

Jornalista, escritora e comunicadora

Gizele Martins é jornalista formada pela PUC-Rio, mestre em Educação, Cultura e Comunicação em Periferias Urbanas pela UERJ, doutoranda em Comunicação e Cultura do Programa de Pós-Graduação da ECO/UFRJ, integrante do Laboratório de Estudos em Comunicação Comunitária (LECC/UFRJ). 

leia também

@brunoitancpx

Pode matar bandido?

Pela não criminalização da favela e não legitimação do genocídio negro
Timbau-foto-Raysa

Mudanças climáticas: assim as favelas se preparam

Vítimas maiores do aquecimento global, as comunidades vão à luta. Multiplicam-se hortas comunitárias, cooperativas de reciclagem, aplicativos de alertas contra desastre e cinemas a céu aberto. Vale conhecê-los e perceber: falta, agora, a ação do Estado
1091736-ferfraz_abr_20170922_160815_1

Série de artigos: Rio em rota de colisão

A Fundação Rosa Luxemburgo convidou pesquisadores e escritores para participarem da série: Rio em rota de colisão. São três artigos argumentativos e investigativos sobre a temática